segunda-feira, 6 de abril de 2009

4 Cão Faminto

Um cão faminto veio á porta de minha casa hoje.
Ele não tinha nenhum propósito senão comer, e não tinha onde encontrar comida. Também não tinha um pingo de decência ou boas maneiras. Eu tentei ser educado ao pedir que ele se afastasse da minha casa, ele me ignorou. Quando chamei sua atenção e exigi, pois é meu direito, que ele saísse da minha propriedade, ele apenas riu com desdém e ordenou que eu trouxesse comida!
Pensei duas vezes antes de enxotá-lo com violência e elaborei um plano. Fui até a cozinha e recolhi todas as sobras, os pães mofados, as carnes podres e tudo o mais que não prestava. Enchi uma tigela, levei até ele e o monstro, pasme, devorou tudo em segundos! E depois me pediu mais.
Cansado de ter que lidar com essa aberração na porta de minha própria casa providenciei comida de boa qualidade e levei duas tigelas cheias, na esperança de que ele fosse embora saciado. Enganei-me. Sua reação foi a mesma da primeira vez: ele pediu mais.
E mais eu lhe dei, enchendo três tigelas cheias de comida que ele devorou com a mesma rapidez e voracidade, ordenando que eu buscasse mais assim que terminou de lamber os lábios e arregaçar os caninos ameaçadoramente.
Fui então á cozinha e busquei quatro tigelas que levei até o quintal. Enchi-as de pedras e cobri-as com a única coisa restante na despensa: um pouco de molho em uma garrafa solitária. O cão, faminto e ignorante, levou todas as pedras á barriga sem nem dar a satisfação de mastigá-las. Foi então que ele percebeu o que tinha feito, pois o peso em seu estômago o impedia de se mover.
Voltei á minha casa e tranquei a porta enquanto a criatura, sem poder se mexer, me amaldiçoava, rosnando e uivando impropérios dos piores tipos, e esperei. Em pouco tempo eles estavam lá: os necrófagos, os abutres, os corvos, os urubus. Eles sentiram o cheiro da comida putrefata dentro do cão, e das guloseimas que eu lhe dei, e de sua própria carne, rançosa e peluda. E bicaram.
E bicaram.
Observei parte do sofrimento do cão pela janela, mas confesso que não senti pena ou arrependimento algum enquanto roubavam sua pele, arrancaram seus olhos e sua língua e o transformaram em um esqueleto cheio de pedras dentro. Ver aquilo não me afetou em nada, mas agora devo admitir que os uivos do cão me perturbaram um pouco. Houve uma hora em que ele parou de vociferar e suplicou clemência – mas já era tarde demais, mesmo que eu tivesse clemência á dar.
Assim que as aves saíram, eu fui até a varanda, enterrei os ossos do cão junto com as pedras o mais longe possível de casa e o mais fundo no chão que consegui cavar. Eu escovei e limpei a varanda três vezes, e só agora me sinto confortável sabendo que não há mais sangue nela.
Criatura estúpida!

quinta-feira, 26 de março de 2009

3 Memórias

Hoje acordei me sentindo muito bem; levei uma toalha e comida para fora e tomei o café da manhã no jardim, para aproveitar a beleza do dia, o glorioso nascer do sol, o começo de mais um magnífico episódio de minha vida. Enquanto a névoa da manhã se dissipava com o calor relaxante do Astro Rei eu preguiçosamente comia meus quitutes, pensando em coisas banais. Foi aí que eu ouvi um ruído bem peculiar que me chamou a atenção; o som de alguém tentando controlar o choro. Virei-me, e qual não foi minha surpresa quando me deparei com um dinossauro!
Não sou especialista em paleontologia, mas um lagarto maior que minha casa não pode ser classificado de outra maneira em minha mente. E lá estava ele, não um dinossauro pacato herbívoro, mas um daqueles predadores cheios de presas pontiagudas e o olhar afiado de um caçador... Mas seu olhar era apenas uma sombra, pois seus olhos estavam marejados de lágrimas.
O medo que eu deveria sentir de tal criatura nem se instalou em mim, pois fui tomado de curiosidade e pena assim que percebi seu estado. Com educação, perguntei se ele não queria se juntar á mim para comer um pouco, também na esperança de conversar com ele e oferecer minha ajuda, se ajuda-lo fosse possível.
A comida ele recusou, e de minha proposta de ajuda ele fez pouco caso. Perguntei para ele por que ele chorava, e ele disse que estava sozinho, pois sua raça, suas glórias e suas dinastias, extintas há milhões de anos, não passam de memórias na mente do planeta, compostas apenas de pegadas e fósseis. Disse á ele para se acalmar, que tudo passa, pois essa é a natureza da Natureza, então ele me respondeu que, no caso dele, era diferente. O consolo que eu oferecia á ele não bastava, pois em sua época ele tinha sido um bravo guerreiro, rei de muitos países e conquistador de mais alguns; mas agora tudo sobre ele tinha se reduzido á histórias sobre uma criatura enorme e estúpida, de temperamento bélico, fadada á autodestruição. Perguntei o que ele fazia na minha casa e ele respondeu que estava apenas de passagem, que seu destino era seguir viagem para onde ele fosse uma necessidade. Pois com ele carregava consigo um disfarce que fazia outros humanos acharem que ele era humano também, e, com isso, sobrevivia no planeta entre a humanidade, tentando se encaixar entre os Homo Sapiens.
Caí num dilema. Como consolar um lagarto rei? Será que eu deveria? Pois talvez ele estivesse certo e seu sacrifício moral tenha sido em vão. Então, como eu deveria agir?
Com um movimento brusco, peguei uma faca e enfiei com força em seu pé. O lagarto urrou de dor e surpresa, olhou para mim com ódio e estava prestes á me atacar quando disse que fiz aquilo para o bem dele. Ele me perguntou por quê.
Porque ainda se lembram, expliquei. Existem pessoas no mundo ainda dispostas á lembrarem-se dele de maneira carinhosa, como um rei merecido, simplesmente por causa de seu valor inato; não do que ele foi, mas do que ele ainda é capaz de ser. Expliquei que o passado é uma janela fechada, que mesmo que você veja através dela, não dá para alterá-lo, e o futuro é imprevisível, a porta de um quarto trancado onde ele pode ainda encontrar maravilhas que nunca sonhou com. E eu estaria disposto á lembrar dele. E a dor da facada passaria, mas a cicatriz continuaria lá, e isso ele não poderia ignorar, e faria ele se lembrar de mim, e das memórias que eu guardarei para ele.
Ele me ouviu com paciência enquanto o sangue escorria de sua ferida. Talvez tenha sorrido; difícil dizer, no caso de um lagarto. Talvez eu o tenha ajudado, talvez não. Mas ele prometeu que seguiria viagem e depois voltaria.
Enquanto ele ia embora e eu recolhia as coisas do café, percebi que o sol tinha apenas feito uma aparição na manhã; nuvens negras encobriam o céu, e, na direção para onde o dinossauro ia, já estava trovejando ao longe. Ciente de que ele ia encontrar muitas dificuldades em seu caminho, cruzei os dedos por ele enquanto lhe desejava boa viagem e feliz regresso.
Não conheci muito do dinossauro. Acho que ele não pode ser muito conhecido por quem não é dinossauro. Mas sei que ele deixou saudades. Espero que ele não demore á voltar.

domingo, 22 de março de 2009

2 Solstício de Inverno

Foi Solstício de Inverno há três dias e, como de costume, as bruxas vieram á minha casa para me pedir ajuda em recolher a lenha. Disseram elas que a fogueira desse ano deveria ser a maior já feita, que mesmo na Terra Encantada dos Elfos, Fadas, Gnomos e Ogros ela seria vista e teria seu calor sentido. Aquiesci, pois discutir com uma bruxa não é apenas cansativo, mas também perigoso. Não sou dado á superstições, mas estudos místicos de confiança comprovam que contrariar bruxas causa má sorte, e eu não preciso disso no momento. Nem nunca.
A tarefa demorou mais do que o esperado. Elas insistiram em não apenas lenha, mas em muitas outras coisas para queimar na fogueira, especialmente entranhas de animais capturados, e eu capturei a maioria deles. Foi trabalhoso fazer armadilhas para os pássaros, mas nada se comparou á emboscar um urso com uma pedra que pesava quase tanto quanto eu. Finalmente, com combustível o suficiente, eu as ajudei a construir a fogueira, e devo admitir que o esforço fora recompensado, pois foi um magnífico fogo. As bruxas logo se esqueceram de mim assim que a noite caiu e o frenesi da ocasião tomou suas almas, e eu assisti, maravilhado, aquela demonstração ritual de danças celebrando... Bem, não sou especialista no que as bruxas celebram, mas era magnífico.
Em dado momento, quando a lua estava alta, todas se aproximaram da fogueira, cada uma á seu modo, e atiravam alguma coisa no fogo – algo muito pequeno para se ver. Uma das bruxas tomou meus braços e explicou com uma gargalhada alucinante, enquanto me rodopiava, que na fogueira deve ser atirada terra com mágoas, para que estas fiquem queimadas. Fiz o meu possível. Também atirei um punhado de terra, na esperança de que os fantasmas de meu passado não me assombrassem mais.
Gradualmente a festa foi crescendo, pois era literal o fato de que a fogueira fora sentida no Outro Lado do Horizonte. A Hoste começou a aparecer, cordial e educada, seguida pelos abundantes seres mágicos que variam tanto em tamanho, cores, gestos – até mesmo quantidade de membros – que classifica-los como espécie levaria á loucura qualquer um.
Eles também atiraram suas mágoas na fogueira. Fiquei pensando quais medos e tristezas vivem no coração de quem é imortal como as Fadas. E suas lágrimas, são iguais as nossas? Ou só o fato de que eles também choram já é o suficiente para sermos semelhantes?
Como toda festa, essa teve um fim, após o clímax do nascer do sol. As Fadas foram embora e as bruxas perceberam minha presença ainda no local, e se aproveitaram disto para me pedir ajuda em varrer o local onde estava a fogueira para consagrá-lo.
Próximo Solstício de Inverno espero apenas que as bruxas tenham a decência de me lembrar de levar um agasalho. E de dizer “obrigado” de vez em quando!

quinta-feira, 19 de março de 2009

1 Oceano de Quietude

Há um vasto abismo de divergências entre eu e o Sr. Bloomberg, que talvez nunca seja cruzado. Ambos somos teimosos e dados á manipular uma conversação para nossos próprios interesses, e nos conhecemos bem demais ao ponto de que qualquer conversa entre nós rapidamente se transforme em um jogo de estratégia – ou em uma catástrofe violenta, como quase foi o caso hoje.
Desta vez, como em tantas outras, o assunto em pauta foi a natureza humana, e nesse assunto somos sempre inclinados á discordar. O Sr. Bloomberg acredita que seres humanos mudam seus padrões de comportamento conforme eles revêem suas prioridades na vida, e que as escolhas são mais importantes que eventos exteriores á consciência. Eu, naturalmente, não posso concordar com isso, de maneira alguma. Minha opinião é de que o ser humano se adapta á novas situações; Nunca realmente mudando, é o mundo que na verdade muda á sua volta, e os fatores aleatórios que compõem a natureza caótica do universo têm mais peso em nossas vidas do que nossas decisões.
Presumo que o ponto de vista do Sr. Bloomberg venha de uma crença ingênua no progresso intelectual do indivíduo e uma ignorância á respeito de como o universo funciona. Naturalmente que ele ficou furioso quando eu lhe disse isso. Disse que eu era apenas mais um dos derrotistas que levam o mundo á falência com minha visão pessimista. Com voz alterada e gestos frenéticos, me acusava de levar tragédia para os lares de todo o mundo. Tentei acalmá-lo e explicar para ele que minha visão não é pessimista nem otimista, pois o caos não tem direção. Ele cordialmente ouviu o resto de minha explicação durante o chá, mas se apressou em ir embora com um tom seco em sua voz quando se despediu.
É tão raro em meio á esse caos encontrar um lugar calmo, um jardim ordenado o suficiente que aceite plantações. E, mesmo que sejam encontrados eles mudam de novo e novamente, pois caos só gera mais caos – essa é sua natureza. Talvez por isso a Paz seja uma virtude tão preciosa, pois mesmo uma gota de Paz pode ser um Oceano de Quietude para aqueles que sabem apreciá-la e tem essa oportunidade. O Caos não é neutralizado nesses locais, apenas posto em perspectiva; Afinal, existe um “motivo” para o caos universal, e é apenas aproveitando esses momentos que vislumbramos a glória de sua existência e nossa alma é plenamente revigorada com a satisfação de viver, apenas viver, sem depender de ordem alguma.
Só espero que o Sr. Bloomberg tenha chegado bem á sua casa. Deus sabe que eu me preocupo com a quantidade de conhaque que esse homem ingere, e me preocupo também com seus sentimentos, embora ele provavelmente não acredite nisso, da maneira que ele ataca minhas análises. Mas sei que ele não guarda rancores e provavelmente será em breve que nos encontraremos para mais um caloroso debate.